A forma como uma sociedade encara o fim da vida diz muito sobre seus valores, sua cultura e sua capacidade de enfrentar dilemas humanos profundos.
Na França, esse debate ganhou novo fôlego a partir de 2022 com a criação da Convenção Cidadã sobre o Fim da Vida, uma iniciativa inovadora que buscou envolver a população na formulação de propostas para possíveis mudanças na legislação que trata do direito de morrer com dignidade.
A questão central era delicada: o modelo jurídico e médico francês oferece, hoje, as melhores condições para respeitar o sofrimento e a vontade dos pacientes em fim de vida? Ou seria necessário avançar para novas formas de assistência ativa à morte, como a eutanásia ou o suicídio assistido?
Uma iniciativa democrática inédita.
Convocada pelo presidente Emmanuel Macron, a Convenção Cidadã reuniu 184 cidadãos franceses, selecionados de forma aleatória para representar a diversidade da população em termos de idade, gênero, origem regional, profissão e opinião. Durante cinco meses, eles participaram de sessões com especialistas — médicos, juristas, líderes religiosos, pacientes, cuidadores e filósofos — além de debates internos entre os próprios membros do grupo.
A pergunta orientadora era direta, mas complexa: “O quadro de acompanhamento do fim da vida na França está adaptado às diferentes situações vividas hoje?” A ideia era produzir um parecer coletivo que pudesse servir de base para possíveis mudanças legislativas, respeitando a diversidade de visões e experiências presentes na sociedade francesa.
As principais conclusões da Convenção.
Ao final dos trabalhos, em abril de 2023, a Convenção publicou um relatório com posições claras e detalhadas.
O destaque ficou por conta da ampla maioria — cerca de 76% dos participantes — que se declarou favorável à legalização da ajuda ativa à morte, englobando tanto a eutanásia quanto o suicídio assistido, desde que respeitadas condições rigorosas.
Entre essas condições, destacam-se:
- O pedido do paciente deve ser voluntário, consciente e reiterado;
- A pessoa deve sofrer de uma doença grave, incurável e com sofrimento físico ou psicológico considerado insuportável;
- A avaliação deve ser feita por uma equipe médica multiprofissional;
- O processo deve ser cercado de garantias legais para evitar abusos.
Ao mesmo tempo, os participantes insistiram na necessidade urgente de fortalecer os cuidados paliativos em todo o território francês.
A proposta da Convenção não foi a de substituir o cuidado pela morte assistida, mas de oferecer opções reais aos pacientes, respeitando a pluralidade de trajetórias e desejos.
A resposta política.
O governo francês recebeu o relatório da Convenção com seriedade. Em 2024, após novas consultas, o governo francês apresentou um projeto de lei que prevê a legalização da ajuda ativa à morte sob condições estritas. O texto ainda está em discussão no Parlamento, com forte mobilização de grupos favoráveis e contrários à medida.
O projeto marca uma possível mudança de paradigma em relação à legislação atual, que permite a sedação profunda e contínua até a morte em alguns casos, mas proíbe a eutanásia e o suicídio assistido.
Os dilemas éticos da regulamentação.
Por trás da discussão legislativa, existe um campo vasto de dilemas éticos. A seguir, destacamos alguns dos principais impasses que marcam o debate.
1. Liberdade individual vs. proteção dos vulneráveis.
Um dos argumentos mais fortes em favor da legalização da ajuda à morte é o respeito à autonomia do paciente. Para muitos, permitir que uma pessoa tome decisões sobre o próprio fim de vida é uma forma de garantir dignidade e liberdade.
No entanto, críticos alertam para o risco de que essa liberdade seja ilusória em contextos de vulnerabilidade emocional, social ou econômica. Uma pessoa em sofrimento intenso pode sentir-se pressionada — ainda que inconscientemente — a escolher a morte para não ser um “peso” para a família ou para o sistema de saúde.
A legislação precisa, portanto, proteger sem infantilizar, oferecendo apoio e alternativas reais para que a escolha seja genuinamente livre.
2. A desigualdade no acesso ao cuidado.
Outro dilema ético importante diz respeito à inequidade no acesso aos cuidados paliativos.
Em muitas regiões da França (como em outros países), esses serviços ainda são insuficientes ou inexistentes. Há o risco de que pessoas sem acesso ao cuidado adequado vejam na morte assistida sua única alternativa, o que configuraria uma escolha feita sob coação estrutural.
Por isso, a Convenção foi clara: qualquer mudança legal deve ser acompanhada de um reforço robusto aos serviços de cuidados paliativos, com investimento público, formação profissional e ampliação da rede de acolhimento.
3. O papel dos profissionais de saúde.
A regulamentação da ajuda ativa à morte também levanta questões sensíveis sobre o papel dos médicos e cuidadores. Eles devem ter a obrigação de realizar o ato, caso o paciente cumpra os critérios legais? Terão direito à objeção de consciência? E como lidar com o impacto emocional dessa prática em quem a realiza?
Essas perguntas não têm respostas simples. A regulamentação precisa equilibrar o direito dos pacientes com os direitos dos profissionais, garantindo segurança jurídica e suporte psicológico a todos os envolvidos.
4. O risco da banalização.
Uma preocupação recorrente, inclusive dentro da própria Convenção, foi o risco de que a legalização possa abrir caminho para uma banalização da morte assistida. Países que já adotaram esse modelo, como Bélgica e Holanda, viram uma ampliação gradual dos critérios ao longo do tempo.
Para evitar esse deslizamento, é fundamental que a legislação francesa seja clara, restrita e submetida a avaliação contínua, com comitês independentes de supervisão e transparência nos dados.
Um debate necessário.
A experiência da Convenção Cidadã francesa mostrou que é possível tratar de temas delicados com profundidade, empatia e escuta plural.
Ao envolver cidadãos comuns no processo deliberativo, a França demonstrou confiança na maturidade democrática da sua população — e ofereceu ao mundo um modelo inspirador de como lidar com dilemas que tocam o cerne da condição humana.
Mais do que chegar a um consenso, o processo permitiu reconhecer a diversidade de experiências, sofrimentos e desejos que cercam o fim da vida. E, ao fazer isso, contribuiu para tirar esse tema do tabu, abrindo espaço para uma discussão mais humana, transparente e cuidadosa.
O debate sobre a morte é, no fundo, um debate sobre a vida — sobre como vivê-la com mais dignidade, até o fim.